Faríamos bem de nos livrar de dois preconceitos que travam o debate público: como o de achar que tudo que é estatal e bom e o privado é ruim (ou vice-versa). Foi isso que movimentou a barulhenta reação de políticos e educadores à inclusão, no novo Fundeb, da possibilidade de repasse do Fundo a até 10% das matrículas em escolas confessionais, filantrópicas ou do Sistema S.

Comentou o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) em seu Twitter: “LAMENTÁVEL… A Câmara acaba de aprovar emenda do Novo que permite destinar dinheiro do Fundeb para pagar funcionários de instituições privadas de ensino.”

Por acaso o professor que atua em instituição privada é algum tipo de pecador, intocável que as Secretarias de Educação deveriam ignorar? Se está servindo à sociedade, prestando serviço sem custo a quem o recebe, o que importa se é empresa privada ou governo? O foco da política de educação não deve ser no meio, mas no fim: o aluno. Dar a nossos alunos a melhor educação possível dados os recursos disponíveis deveria ser o único critério.

A reação de alguns pedagogos foi igualmente de rejeição automática. Em artigo à Carta Capital (“Só o Senado pode salver o Fundeb”, 15/12), Daniel Cara rejeitou a proposta baseado única e exclusivamente na escolha do verbo “desviar”. A destinação de verbas públicas a instituições privadas é chamada de “desvio de verba”, e isso basta para ser contra ela. Nem uma tentativa de discutir os resultados que tal medida traria, o que supostamente deveria ser o interesse de alguém que trabalha com educação.

O Todos Pela Educação, também contrário à medida, indica que ela pode significar uma transferência anual de R$12,8 bi da rede pública a escolas privadas (sem fins lucrativos), se for integralmente utilizada. Falta olhar pelo outro lado: na mesma medida em que receber menos recursos, a rede pública também terá que arcar com menos custos, pois os alunos que forem à rede privada deixarão de frequentar a pública. Há um argumento alocativo relevante aí: isso poderá significar mais dinheiro para municípios mais ricos e menos para municípios mais pobres (nos quais, afinal, não existem escolas filantrópicas, confessionais e do Sistema S).

Há sim riscos ligados ao financiamento público de escolas privadas: elas podem servir de fachada para a doutrinação religiosa; ou podem ser apenas mais um canal de transferência de recursos públicos para interesses privados. Garantir que as instituições contempladas com verbas públicas entreguem resultados bons e se pautem de maneira ética diz respeito às regras e aos contratos que cada município ou estado estabelecer. Na busca pelo lucro, a empresa privada pode lesar trabalhadores e consumidores. Via de regra, o melhor remédio para isso é a concorrência, com a regulamentação tendo importância crescente quão mais próximo do monopólio for o setor.

Da mesma forma, há os riscos ligados à gestão pública da educação, que conhecemos tão bem: professores e diretores desmotivados, que faltam com frequência, descaso completo com o resultado dos alunos. É inegável também que, assim como temem a doutrinação religiosa, a doutrinação política pode ocorrer na rede pública. Assim como nada disso prova que o ensino público é necessariamente ruim (as escolas de Sobral no Ceará e em diversas outras cidades estão para aí mostrar que é possível ter gestão pública de qualidade mesmo em meio à condições materiais pobres), os possíveis abusos do ensino privado não o desqualificam.

Alguns dos temores dos opositores da medida estão contemplados no próprio texto aprovado para o Fundeb. Há receio quanto à qualidade do ensino nas instituições privadas? Pois o texto obriga que esses estudantes prestem os exames do sistema nacional de avaliação da educação básica e demonstrem resultados satisfatórios nessas avaliações. Há o temor de que o colégio privado cobre muito mais do que o estatal? Isso também está respondido: o gasto por aluno pago pelo Fundeb na rede privada não poderá ser superior ao gasto por aluno da rede pública na mesma modalidade.

Se os oponentes da política acreditam que ela leva a má alocação de recursos (ou seja, que o mesmo montante aplicada na rede estatal geraria mais resultados educacionais), deveriam apresentar evidências nessa direção. Ao contrário, a experiência de outros países tem sido justamente que as charter schools – incipientes no Brasil, e que poderiam se beneficiar do Fundeb – conseguem melhores resultados do que a rede estatal. É o caso da rede Success Academy, de Nova York, que tem levado alunos de baixa renda e de minorias a notas espetaculares, melhores inclusive do que as de muitas escolas com alunos de renda mais alta. Escolas que buscam excelência, recebem recursos públicos e têm gestão privada.

Há polêmicas acaloradas sobre por que algumas escolas charter conseguem resultados tão bons. E é excelente que eles ocorram. Com mais variedade de abordagens – e lembrando que poderá ser alocado no máximo para 10% das matrículas públicas -, temos mais capacidade de experimentar e descobrir o que funciona melhor em que casos, como e quando. Algo similar já ocorre na Saúde: o SUS paga atendimento nas Santas Casas. Está nas mãos do gestor público decidir se o ensino em sua região se beneficiaria de vagas em instituições privadas.

O novo Fundeb é um avanço com relação ao anterior: mais recursos para a educação infantil, seleção de diretores com critérios mais técnicos e outras mudanças darão ao Brasil ferramentas para, quem sabe, avançar nesse campo tão negligenciado. A possibilidade de financiar escolas privadas que sirvam ao ensino de jovens originalmente da rede pública não deveria ser descartada de antemão. Merece ser julgada por seus resultados. Público ou privado, o foco tem que ser no aluno.

 

Fonte: https://exame.com/
Publicado em: 15/12/2020 às 16h31